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sexta-feira, 23 de julho de 2010

URBANIDADE, CIDADANIA E... POETICIDADE


por Glauco Mattoso


Abrindo o mês de outubro de 2005, palestrei sobre o papel do poeta e da poesia na cena urbana. O evento tinha local estratégico: a nevrálgica esquina da Paulista com a Augusta, em pleno Conjunto Nacional. Alinhavo aqui o recheio do papo. Enquanto arquitetos, urbanistas e outros técnicos pensam uma metrópole de forma objetiva e racional, o artista a vê de forma subjetiva e emocional, a exemplo do pintor, do fotógrafo ou do cineasta que escolhem a cor, o ângulo e o panorama que querem retratar, seja com intenção crítica ou não. O poeta escolhe palavras para traduzir suas impressões. Até aqui nada de mais. Mas caso o poeta seja cego, o que muda? Será que as palavras escolhidas refletirão suas impressões? Será que as impressões coincidirão com as dos demais poetas e as do restante da população?

Antes de levantar tais questões, convidei a platéia a colocar-se em dois pontos de observação: a posição da poesia diante da cidade e a posição da população face ao poeta. Lembrei que, na língua portuguesa, a poesia nasce marítima e desbravadora com Camões, depois torna-se bucólica e pastoril com os arcádicos do Brasil colônia. Mesmo a capital baiana que Gregório celebrizou não passava duma aldeia comparada à corte imperial no Rio, mas esta não foi devidamente cantada pelos românticos, parnasianos e simbolistas, mais preocupados com deuses do Olimpo e personagens mitológicos que com a sarjeta da esquina. Aqui em São Paulo o poeta nem teria cenário suficiente para grandes comentários: basta verificar como um Álvares de Azevedo mal consegue se afastar dos arredores do provinciano cemitério da Consolação. Só no século XX, com a revolução modernista, a Paulicéia Desvairada desperta a atenção dos poetas e a vida urbana passa a fazer parte do imaginário literário. E só com outra revolução -- a da Bossa Nova na música popular -- a poesia extrapola as páginas impressas e as lombadas para ecoar na boca do povo através dos palcos, das rádios e dos discos. Mário de Andrade passa o bastão a Vinícius, que o transfere a Chico Buarque, Caetano e Gil. Mas neste ponto lembrei que, se desde Camões nossa poesia tinha no livro seu veículo e seu patrimônio tombado, é preciso ressalvar que, bem lá atrás, na Antigüidade, era ao ar livre, em praça pública e ao vivo, que os poetas atuavam. Estariam eles, depois de séculos, recuperando a vocação musical e teatral da poesia no espaço urbano das metrópoles contemporâneas? Será que a programática visualidade introduzida pelo concretismo, por outro lado, teria algo a ver com a espontaneidade anárquica das grafitagens e dos cartazes panfletados pela geração setentista dos "poetas marginais"? Em ambos os casos -- da poesia oral ou mural -- poder-se-ia supor que a obra poética sai das elitistas prateleiras das bibliotecas para ir ao encontro do anônimo transeunte, do ouvinte ou do telespectador? Coincidiria tal reaproximação popular com a fase em que, tendo passado por uma ditadura violentamente censória, o país buscasse seus mecanismos de redemocratização e de participação social? Antes de avançar mais um passo nesta reflexão, faço uma pausa para mostrar um de meus sonetos mais paulistanos:

SONETO A RAMOS DE AZEVEDO

Não é do Martinelli seu desenho,
mas fez duma cidade a felizarda:
São Paulo deve a ele ter mansarda.
Por isso aqui render tributo venho.

Palácios e mansões do seu engenho
saíram. No seu tempo foi vanguarda,
embora alguns sustentem que retarda
da vaga modernista o desempenho.

Faz da Casa das Rosas a revista,
a síntese daquela arquitetura,
francesa, neoclássica, paulista.

Talvez alguma dose de mistura,
mas não há forma pura que resista
à miscigenação, nossa feitura.


O local desta palestra está situado, ao longo da avenida, no extremo oposto a uma das únicas mansões sobreviventes em meio às torres de vidro e alumínio: a Casa das Rosas, projetada por Ramos de Azevedo, a qual hoje abriga a biblioteca de Haroldo de Campos e um espaço cultural que leva o nome do poeta concretista. Outras duas casas estão preservadas em função da memória poética da cidade: a de Mário de Andrade na Barra Funda e a de Guilherme de Almeida no Sumaré. As três guardam em comum o mesmo detalhe arquitetônico: o sótão em forma de mansarda, com suas janelas deitando sobre o telhado quase vertical, à francesa. Se a influência européia marcou nossos poetas e arquitetos no início do século passado, o fato é que, graças à saudável antropofagia tropical, nesta terra em se plantando tudo se transforma, e hoje essas raras fachadas parisienses são tão contrastantes quanto as igrejas "barrocas" de aspecto colonial em meio ao caos arquitetônico pós-moderno. Antes de perder a visão, fotografei na mente, ao longo das décadas, essa mistura de estilos que tem no prédio Martinelli a síntese do arranha-céu e da mansarda. Sou duma geração que, tendo passado pelo rock e pela rebeldia dos hippies e punks, enxerga na anarquia paulistana um fenômeno vanguardista em estado puro: até nossa poluição visual, sonora e atmosférica, nossa falta de verde e nossos rios reduzidos a esgoto – em suma, todo esse quadro que ao cidadão esclarecido se afigura como decadente -- ao olhar do poeta punk representa um avanço, uma antecipação futurista -- e nesse caso São Paulo estaria na dianteira das maiores capitais, já que passa agora por aquilo que um dia passarão todas as grandes aglomerações. Mas nem por isso a percepção do poeta contracultural minimiza a importância da qualidade de vida numa coletividade. Afinal, minhas reminiscências mais remotas se situam na Zona Leste, que nos anos sessenta era mais descampada, mais carente de equipamento urbano porém mais respirável. Aproveito outra pausa para citar o soneto que declamei durante a palestra:

SONETO PAULOPOLITANO

Alguns passos além do Marco Zero
a catedral da Sé, quase acabada,
resume em neogótico a salada
humana e desumana onde me gero.

No leste nordestino já fui vero
bambino da rural Vila Invernada.
Nasci, porém, na Lapa, que é pegada
à toca dum poeta que é pantero.

Elíseos, Campos, Brás, Bixiga e Moóca,
Belém, Limão, Carrão, Pari, Moema:
Qual minha casa, cova, taba, toca?

Não fosse eu paulistano tão da gema!
Na rua Lavapés me desemboca
a língua, que ali lave, goze e gema!


Sim, tenho consciência -- e sei que a maioria dos poetas a tem – de que, se São Paulo não é um cartão postal (nem tem qualquer ponto turístico que se destaque tanto e mereça o foco das câmeras ou dos versos), pode ao menos tornar-se mais habitável, um pouquinho mais, se no meio do lixo ou do barulho algumas palavras escolhidas forem legíveis ou audíveis a ponto de distrair, nem que seja por um instante, a atenção dos habitantes ocupados e preocupados com a sobrevivência. Durante a palestra lembrava eu que, tendo morado por alguns anos no Rio, percebi como aquela cidade depende da moldura natural (montanha, mar e áreas verdes) para justificar o orgulho do carioca. Mas, depois que fiquei cego e, novamente radicado em Sampa, já não podia apreciar o maravilhoso panorama do horizonte recortado contra o azul do céu, concluí que de nada adianta a paisagem ao longe se a calçada onde pisamos está tão suja, esburacada ou obstruída quanto a de qualquer bairro carioca ou paulistano. Afinal, uma cidade é aquilo que o homem constrói (e destrói, como diz Caetano), e não aquilo que a natureza e a geografia proporcionavam antes que o homem chegasse para povoar (e depredar). Enquanto estive no Rio, morei em Santa Teresa, um bairro muito arborizado e totalmente tombado, talvez o único caso de morro urbanizado a contento. Contudo, as ladeiras e escadarias tornariam inviáveis as caminhadas para o cego que sou hoje, preso ao meu quase plano quarteirão na Vila Mariana. Portanto, tudo é relativo, inclusive o conforto do deficiente físico que sai à rua. Para o cego, é tão importante a sombra da árvore (desde que os galhos não lhe espetem a cara) quanto uma calçada bem pavimentada e sem degraus. Na impossibilidade de unir o útil ao agradável, é preferível a calçada, e nesse caso São Paulo pode estar mais aparelhada que o Rio, na média dum levantamento topográfico. Ou então tudo não passa da sensação subjetiva do poeta recluso, que agora só sai de casa acompanhado para dar a volta ao quarteirão – como registro num dos sonetos declamados na palestra:

SONETO AO FIM E AO CABO

Ao cabo de alguns anos bengalando,
decoro cada pedra do caminho,
o ponto onde alguns galhos com espinho
esbarram-me na cara enquanto eu ando.

Ao cabo de alguns meses sonetando,
compor passa a processo comezinho,
tal como encher o copo com mais vinho
sabendo, em plenas trevas, quanto e quando.

A forma do soneto é o quarteirão
ao qual, por anos, dando a volta vim
sem guia ou companhia de outro cão.

Caminhos nunca mudam para mim.
Só muda a caminhada, como vão
mudando meus sonetos. Chego ao fim.


Exposto o ponto de vista de quem não vê mas já viu, resta inverter os termos da questão para, no lugar do cidadão anônimo, indagar o que a cidade poderia esperar dos poetas ou da poesia. A resposta a essa demanda foi dada, no decorrer da palestra, quando citei a cosmopolita composição da população paulistana, na qual a presença nordestina pode ser notada pelas emboladas e pelejas de cantadores nas praças apinhadas; ou quando citei as panfletagens e happenings da minha geração "marginal" -- um tipo de performance que ainda hoje comprova ser participativo, a julgar pela repercussão de eventos como "O Autor na Praça"; ou quando citei a concorrida atividade dos centros culturais como as casas de Mário de Andrade ou das Rosas; ou quando citei as intervenções dos grafiteiros, colegas dos rappers que transformam a periferia num universo criativo e fascinante, apesar da (ou por causa da) violência e da criminalidade inerentes aos conglomerados megalopolitanos. Ou mesmo quando lembrei que, já na década de vinte, a Semana de Arte Moderna foi apresentada como um espetáculo teatral, no palco do Municipal. Ou seja: o poeta está em toda parte e participa, polivalentemente, do cotidiano urbano como qualquer cidadão, expondo seu trabalho como o camelô na esquina ou o peixeiro na feira. Porém uma coisa é certa: jamais o livro deixará de ser a embalagem mais durável para um produto tão perecível como a palavra. Nem a biblioteca -- inclusive aquelas que são improvisadas nas comunidades carentes graças às doações, entre outros, dos poetas -- deixará de ser o templo, ainda que mambembe, do culto à palavra. Por isso nunca é demais lembrar que um soneto tão comemorativo, como este que encerra minha exposição, aparece, por exemplo, em duas antologias das mais representativas do panteão paulistano: PAIXÃO POR SÃO PAULO, organizada pelo poeta Luiz Roberto Guedes, e SÃO PAULO EM PRETO E BRANCO PELO OLHAR DE SEUS ESCRITORES, organizada pela professora Maria Rosa Duarte de Oliveira, da PUC-SP. Com ele me despeço do respeitável público para retornar ao camarim, até a próxima volta ao picadeiro da rua e à corda bamba da calçada, empunhando minha bengala branca de malabarista cego.

SONETO URBANIVERSADO

Feliz aniversário, Paulicéia!
Do Pátio do Colégio ao infinito,
o imenso não é feio nem bonito:
darás de megalópole uma idéia?

Tens cara de africana ou de européia?
Tens árvore de figo ou de palmito?
Tens catedral de taipa ou de granito?
Tens flor? É rosa, hortênsia ou azaléia?

Te tornas, ano a ano, mais mudada:
quem chega não se encontra com quem parte;
a rua não se avista da sacada.

Poetas não têm jeito de saudar-te;
tu, pois, que cantes, antes de mais nada,
que és obra, em fundo e forma, in progress: arte!


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(1) O Projeto de Extensão multipliCIDADEscrita agradece ao poeta paulistano Glauco Mattoso, autor de diversos livros sobre vários temas escritos em vários gêneros literários e ensaísticos, por ter cedido os direitos de publicação deste texto. Quase todos os textos de Glauco estão na internet: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/quem.htm

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